quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A GIRA DO PRETO-VELHO

Uma matéria que produzi na faculdade para a disciplina de jornalismo gonzo.



   Bebi mais uma xícara de café e fumei alguns cigarros. Chovia bastante naquela tarde de segunda-feira e minha cabeça definitivamente não estava bem. A ressaca resultante da bebedeira do dia anterior me dominava quando decidi ligar para o terreiro de Umbanda Pai Maneco. Uma mulher atendeu e eu expliquei que gostaria de fazer uma matéria. “Você precisa da autorização do Pai Fernando”, disse ela com indiferença. Perguntei se poderia falar com o tal Pai Fernando. “Ele chega lá pelas 19h30 e a gira começa às 20h, se você preferir pode mandar um e-mail para ele que com certeza ela vai te responder”.
Pensei, vou desistir e voltar para a cama, afinal não e sinto bem... Mas minha consciência pesou, que droga de jornalista eu serei sendo vencido por uma chuvinha e uma ressaca infernal? Acendi mais um cigarro, tomei minha pílula e ponderei... Não posso ir de moto, vou pegar o ônibus mesmo!
   Foram necessários três deles, um cinza, um vermelho e um amarelo até as proximidades do cemitério situado no bairro Santa Cândida em Curitiba. No caminho ouvi todo o primeiro disco da banda inglesa Andrômeda, de 1969, o que me trouxe alguma disposição.
   Ao me aproximar do terreiro me deparei com a primeira das diversas surpresas da noite, dois homens na chuva, vestidos de branco acendiam velas no mato ao lado do muro da capela do cemitério onde um corpo estava sendo velado por amigos e familiares do morto. Em seguida observei que haviam muitos carros estacionados no local, percebi de imediato que aquela seria uma experiência excitante.
   Entrei pelo portão principal onde havia uma placa dizendo, ESTACIONAMENTO R$2,00. Segui para onde havia mais pessoas, o chão completamente enlameado e o cheiro fortíssimo de incenso preenchiam a cena onde muitas pessoas fumavam, eu como um bom macaco também acendi imediatamente o meu cigarro. O local era uma cantina, podia-se comprar salgados, refrigerantes, água e uma bebida servida em pequenos copos que me chamou a atenção, mas pela expressão das pessoas que bebiam, julguei se tratar de algo alcoólico. Minha ressaca ainda se fazia presente então desisti de experimentar o liquido que lembrava algum tipo de conhaque.
   Mal tive tempo de fumar todo o cigarro e todas as pessoas já estavam dentro do terreiro, me apressei para conseguir um lugar descente de onde pudesse assistir o ritual, mas cheguei atrasado. O local, um galpão redondo que lembra a tenda de um circo, porém muito menor, já estava lotado. Fiquei admirado que se tratasse de uma segunda-feira. Salvo por algumas cadeiras, não havia lugares suficientes para o número de pessoas presentes, minha percepção adulterada acusava por volta de 100 ou 150 pessoas de todas as idades. A decoração era agradável, imagens de entidades e pentagramas eram símbolos facilmente reconhecíveis por todo o local. Infelizmente fui obrigado a permanecer espremido entre pessoas que estavam próximas a porta de entrada e saída, mas ainda assim pude distinguir aqueles que estavam assistindo (vestiam trajes civis) dos que eram a atração principal, estes ficavam no centro, descalços, vestidos de branco com uma faixa colorida na cintura e diversos colares de bolinhas de plástico coloridas no pescoço.
   - Por acaso você sabe o que significam as faixas e os colares que eles estão usando? Perguntei a uma moça que estava sendo espremida e empurrada ao meu lado.  
   - Aquilo indica os níveis de hierarquia entre eles, por exemplo, quem é o pai-de-santo ou a mãe-de-santo. Disse ela gritando ao meu ouvido, já que os músicos do terreiro haviam dado início a gira do Preto-velho.
   Tocaram muitas canções, uma seguida da outra e me senti como se eu fosse o único ali que não conhecia as letras, pois os lábios de todos se moviam acompanhando os músicos. O Pai Fernando (Pai-de-santo do dia) surgiu no centro da roda, um senhor baixo e careca que mantinha um olhar irritado pra todos no recinto, disse algumas palavras ao microfone que não fizeram sentido algum para mim. Logo em seguida Pai Fernando dirigiu-se para um canto e ficou sentado com diversas velas acesas aos seus pés enquanto pessoas selecionadas por seus discípulos vinham ao seu encontro em busca de cura ou sabe-se lá o que...
   Os outros que permaneceram no centro deram início a transformação, ou melhor dizendo, passaram a deixar que seus corpos servissem de receptáculo para as entidades convidadas durante as canções. Homens e mulheres giravam até que caíssem no chão e então... Pronto! Eles estavam preparados para o ápice da noite, a hora da cura, o momento pelo qual todas as pessoas presentes esperavam.
   Os que tinham um caso mais sério foram ao centro do terreiro e os outros fizeram uma fila em volta, inclusive eu.
   As pessoas de branco bebiam pinga 51 e fumavam charutos que exalavam um cheiro não muito agradável. De repente uma senhora que estava próxima de mim recebeu um espírito, jogou-se com violência no chão e começou a gritar e gesticular muito, todos queriam assistir a cena. Os mais velhos vestidos de branco se aproximaram dela e passaram a dizer coisas que com certeza não faziam parte do idioma português. Não pude tirar meus olhos da velha, queria saber se ela estava fingindo, quando dei por mim um dos “de branco” estava passando as mãos em minhas costas, me assustei um pouco, mas logo me acostumei com a sensação. Quando se afastou pude ver a mulher pequena, uma das primeiras a girar e se “transformar”.
   O que me chamou muito a atenção foi a expressão que eles mantinham no rosto quando possessos, pareciam sentir um nojo, uma repulsa profunda de todos nós, os civis, como se acabassem de chupar um limão.
Mais duas pessoas de branco vieram me curar, tocaram minha cabeça, meus pés e beberam pinga na minha frente. Talvez percebessem de alguma forma misteriosa, o mal que minha ressaca estava me fazendo.
   Ao final da cura as pessoas começaram a deixar o local. Pensei em permanecer e tentar falar com Pai Fernando, mas ele estava certamente com a agenda cheia pelo número de pessoas ao seu redor. Dei-me por vencido, tomei minha pílula e peguei desta vez dois cinzas para voltar ao lar.                       

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